O MON COEUR DE MA MÈRE... TU ES LE KA DE MES TRANSFORMATIONS Isha Schwaller de Lubicz
terça-feira, dezembro 07, 2010
Os gatos no Egipto
O gato é um viajante do tempo do antigo Egito.
Retorna sempre que a feitiçaria ou o estilo estão na moda.
Uma das mais incompreendidas características da vida egípcia é a veneração dos gatos, cujos corpos mumificados têm sido encontrados aos milhares. Minha teoria é que o gato foi o modelo da singular síntese de princípios do Egito. O gato moderno, o último animal domesticado pelo homem, descende do Felis lybica, um gato selvagem do Norte da África. Os gatos são errantes e misteriosas criaturas da noite. Crueldade e brincadeira são a mesma coisa para eles. Vivem do e para o medo, treinando assustar-se e assustar os humanos com súbitas correrias e emboscadas. Os gatos habitam o oculto, isto é, o “escondido”. Na Idade Média, eram caçados e mortos por suas ligações com as bruxas. Injusto? Mas o gato realmente está ligado à natureza ctônica*, mortal inimiga do cristianismo.
O gato preto do Dia das Bruxas é a sombra que ficou da noite arcaica. Dormindo até vinte de cada 24 horas, os gatos reconstroem e habitam o primitivo mundo noturno. O gato é telepata – ou pelo menos acha que é. Muitas pessoas se amedrontam com seu olhar frio. Comparados com os cães, servilmente ávidos por agradar, os gatos são autocratas de evidente interesse próprio. São ao mesmo tempo amorais e imorais, violando regras conscientemente. Seu “mau” olhar nessas horas não é nenhuma projeção humana: o gato talvez seja o único animal que saboreia o perverso ou reflete a respeito. Assim, o gato é um adepto dos mistérios ctônicos. Mas tem uma dualidade hierática. Tem olhar intensivo. O gato fundo o olho de Górgona do apetite com o distanciado olho apolíneo da contemplação. Valoriza a invisibilidade, imaginando-se comicamente indetectável quando atravessa um gramado com passo malandro. Mas também adora ver e e ser visto; é um espectador do drama da vida, divertido, condescendente. É um narcisista, sempre ajeitando a própria aparência. Quando está assanhado, seu ânimo cai. Os gatos têm um senso de composição pictórica: colocam-se simetricamente em cadeiras, tapetes, até mesmo numa folha de papel no chão. Aderem a uma métrica apolínea de espaço matemático. Altivos, solitários, precisos, são árbitros da elegância – esse princípio que considero nativamente egípcio.
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Assim, a veneração dos egípcios pelos gatos não era nem tola nem infantil. Por meio do gato, o Egito definiu e refinou sua complexa estética. O gato era o símbolo daquela fusão de ctônio e apolíneo que nenhuma outra cultura conseguiu. A linha pagã de olho intenso do Ocidente começa no Egito, como acontece com a dura persona da arte e da política. Os gatos são exemplares de ambos. O crocodilo, também cultuado no Egito, assemelha-se ao gato em sua passagem diária entre dois reinos: movendo-se entre água e terra, o rugoso crocodilo é o ego blindado do ocidente, sinistro, hostil e sempre em guarda. O gato é um viajante do tempo do antigo Egito. Retorna sempre que a feitiçaria ou o estilo estão na moda. No esteticismo decadente de Poe e Baudelaire, ele readquire seu prestígio e magnitude de esfinge. Com seu gosto pelo ritual e o espetáculo sangrento, conspiração e exibicionismo, é pura pompa pagã. Unindo primitivismo noturno a elegância de linha apolínea, tornou-se o paradigma vivo da sensibilidade egípcia. O gato, fixando sua rápida energia predatória em poses de stasis apolínea, foi o primeiro a encenar o imobilizado momento de quietude conceitual que é a grande arte.
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Camila Paglia
* ctónico: relativo a ctonos a deusa terra. Segundo a autora, o culto de dioniso, relativamente recente na grécia antiga, vem ocupar o lugar que antes era dedicado a essa deusa.
Camilla Paglia adota a expressão para designar o que nietzsche chama de dionisíaco.
in Personas Sexuais de Camille Paglia.
Companhia das letras, 1994
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